terça-feira, 21 de abril de 2009

Hospitalidade: da relação

Por Rafael Rocha Pansica


Este texto*, pequenino, pretende chamar a atenção para um aspecto que, talvez, seja menos percebido quando falamos em hospitalidade. Na maioria das vezes, pensamos a hospitalidade como aquilo que designa a qualidade mais nobre do anfitrião. Assim, o anfitrião, quando é hospitaleiro, é alguém atencioso, cuidadoso, carinhoso com a pessoa que está recebendo em sua casa. A hospitalidade como qualidade de quem sabe receber o outro envolve, necessariamente, a arte de reconhecer outrem. Saber receber o outro em sua casa é saber reconhecê-lo...

Veja, no entanto, que esse outro que nos dedicamos a receber bem não é qualquer pessoa. Esse outro é uma pessoa com quem se quer conviver, com quem se quer manter uma relação de amizade. Pois bem. Este é o ponto que queremos destacar: é-se hospitaleiro para se estabelecer uma relação com outrem. O bacana de ser hospitaleiro está na possibilidade de convivência com o outro, na possibilidade de se relacionar com as pessoas!

Mas se a hospitalidade tem a ver com relação, é preciso notar que ela não tem a ver com qualquer relação. Hospitalidade, como a entendemos, é um tipo específico de relação: uma relação que envolve o reconhecimento mútuo das pessoas envolvidas. Ok, mas o que eu quero dizer com isso? Deixe-me dar um exemplo.

Convidar fulano para vir aqui em casa é um ato que manifesta minha vontade de me relacionar com ele. Quando fulano recebe meu convite, ele sabe disso. O primeiro passo para o estabelecimento da relação foi dado por mim. Para que haja relação, no entanto, é preciso que fulano aceite meu convite... [Note-se, de passagem, que esse primeiro passo – convidar o outro, ser hospitaleiro – exige certa dose de coragem, pois, afinal, o outro pode muito bem decidir não aceitar o meu convite.] Mas vamos supor que fulano aceite meu convite! Ora, isso significa que ele aceitou adentrar na relação de hospitalidade. A partir desse momento me empenho em arrumar a casa, preparar o tira-gosto, o jantar, etc. E, do outro lado, fulano, hospitaleiro, também se empenha em saber aceitar o convite: ele faz questão de comprar o vinho (ou mandar a pamonha na sexta-feira!), de vir com vontade de elogiar a casa, de experimentar e de gostar do tira-gosto... Enfim, vem com vontade de fazer o encontro funcionar.

Em suma: uma relação exige o envolvimento das partes, o empenho mútuo das pessoas. Não só o anfitrião deve ser hospitaleiro, mas o hospede também! É preciso saber falar, mas também saber ouvir: dar margem a um diálogo, não a um discurso de palanque. Se fulano recebe meu convite com indiferença, há o perigo de meu convite parecer bajulação, puxa-saquismo... É hora de repensar o convite! Pois, repito, ambos devem se envolver na relação, o que, nesse caso, implica em saber trocar hospitalidades. A hospitalidade só se dá através dessa troca: eu reconheço o outro, e ele me reconhece.

Por fim, deixe-me dizer uma última coisa: esse reconhecimento de outrem, dado tanto pelo anfitrião quanto pelo hospede, deve ser voluntário, ou seja, verdadeiro. Eis o pulo do gato: não se deve convidar por obrigação; não se deve aceitar o convite por obrigação! (ou pelos menos, essas coisas não devem se encerrar na obrigação...). A troca deve ser voluntária: ou seja, tudo deve ser feito com verdade e alegria...

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Nota:

* Este texto é, do começo ao fim, inspirado no trabalho de Marcel Mauss (1872-1950), eterno mestre, “patrono protetor dos antropólogos”!

2 comentários:

  1. Rafinha, brilhante! Com sua marca pessoal: elegância e bom gosto.
    Em frente, há o destino! Enfrente o destino!
    Abração.
    Carrilho

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  2. mas então, fiquei pensando na obrigação de ser o próximo anfitrião. A relação não é de obrigação?

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