sábado, 29 de maio de 2010

Um informe sobre José Honorato: vida e morte

por Firmino Gomes da Rocha

para o meu sobrinho Juracy


José Honorato Lemos nasceu em 1919 em Mar Vermelho, no Estado de Alagoas. Filho de João Antônio de Lemos e de Dona Josefa Maria de Lemos.

Aos 20 anos José veio para São Paulo. Trabalhou na lavoura do Sítio Cerejas no município de Marília. De 1942 à 1944 foi plantador de algodão na fazenda Santa Amélia, no município de Pompéia. A essa fazenda ele chegou sem nenhum dinheiro, só com a coragem: era um jovem de 22 anos... Ali arrendou 3 alqueires de mata virgem, derrubou o mato e plantou a primeira roça de algodão, milho e mandioca. Deu certo: foi um bom ano o de 1943. Logo depois arrendou mais 8 alqueires de mata e plantou tudo: algodão, milho, feijão e batata inglesa. Mas dessa vez não deu certo, e perdemos tudo: deu uma doença na plantação (conhecida como “mela”). Foi um desastre total.

José não se abateu, foi em frente. Seguiu o mesmo caminho: deixou a fazenda Santa Amélia e partiu para as margens do Rio do Peixe no município de Rancharia na alta Sorocabana. Lá chegou sem dinheiro, mas com disposição e coragem. Arrendou 25 alqueires (ou 200 tarefas), derrubou tudo e a terceira roça estava formada.

Nessa época (do início de 1940 ao fim de 1944) estávamos juntos. Éramos ele, seu irmão Cazuza e eu. Também estavam o Raimundo Cearense, o José Nunes e o Pedro Cícero. Formávamos uma turma unida e confiável. Estávamos sempre dispostos ao bem, e para isso estávamos dispostos a enfrentar o que der e vier. Assim, praticávamos esporte: ginástica no campo de malha, boxe, pulo a distância e salto com vara. Também freqüentávamos os bailes no fim de semana.

José era um rapaz fantástico. Organizava todas as tarefas e tinha tempo para ler e escrever. Era forte em matemática e geometria. Tinha um respeito por todos nós. Ele era incrível! Nunca esqueci o que recomendava sempre: “Aqui nós nunca devemos nos envolver com mexericos e fofocas. Devemos, sim, ter condutas próprias: respeitar e retribuir a todas as pessoas – os vizinhos, as crianças, os mais velhos e as mulheres principalmente”. Dizia também que todas as pessoas devem se organizar, cuidar da higiene do corpo e da mente. Sempre nos alertava que o bolso não é cofre de guardar moedas e notas baixas (de um ou dois reais): elas deviam ser colocadas em cima da mesa, bem expostas, para o uso de todos e de cada um, quando precisassem. (O dinheiro de maior valor devia ser guardado.) Dizia também que o amor de pai e mãe, filhos e esposa deve ser amado para sempre.

Em novembro de 1944 viajei para o nordeste. Retornei para São Paulo em 1948. Então ele já era casado, morando em um arraial construído por ele, bem no alto de uma região coberta de palmito, árvores e água corrente entre as rochas. Foi no meio dessa floresta que José Honorato, Raimundo Cearense e o amigo Hirako Ocubo abriram uma clareira e constríram a primeira casa da região em 1946. Foi para lá que José, junto de sua esposa e o primeiro filho, se mudou.

Depois de alguns meses eles receberam a primeira visita. Eram dois amigos: José Quirino e Domingos Machado – dois ex-vizinhos lá do Rio do Peixe que resolveram acompanhá-lo e ali ergueram suas casas. Depois foram outros, e outros mais. De quando em quando chegava mais e mais gente. Com um ano depois já era uma cidadezinha construída de madeira e com ruas de terra: aqui e ali casas comerciais, uma igreja, um posto policial, uma farmácia, um dentista e um ônibus que fazia linha de lá à Santo Anastácio (a cidade mais próxima, cerca de 50 Km de distância). Hoje, 63 anos depois, o lugar é uma Cidade-Comarca: a progressista Mirante do Paranapanema, a princesa do oeste paulista, construída graças a um grupo de camponeses arranjados por ali e inteligentemente dispostos a trabalhar para o progresso do Brasil. Esse grupo era liderado por um jovem exemplar: o camponês José Honorato Lemos, incansável e batalhador – o “cara” da época.

Quando cheguei do nordeste já percebi algumas mudanças. José Honorato se tornou um homem politizado e consciente, um político da esquerda progressista, mas não radical. Conhecedor de direitos e deveres, acreditava estar no caminho certo, sonhava e lutava pela união dos camponeses e operários, e por essa causa lutou até sua morte, sem nenhum radicalismo.

Um episódio: em 1950 foi realizado um encontro de camponeses da região. Nos salões da cooperativa agrícola de Santo Anastácio o objetivo era reivindicar melhores preços para o amendoim e o algodão que tinha os preços bastante defasados, nesse encontro participavam os camponeses, os comerciantes, o prefeito, Sr. Toloza, e o vice, Sr. Luty. A igreja e os políticos da cidade, bem a tarde, antes de acontecer o inesperado, alguns telefones ao DOPS (departamento de ordem política e social de São Paulo) informando que centenas de comunistas estariam reunidos em uma cooperativa planejando um assalto a cidade de Prudente e outras, e depois tomar de assalto a capital de São Paulo e o Rio de Janeiro. Uma mentira que causou a invasão e morte de um sargento e as conseqüências foram desastrosas; o DOPS enviou um avião lotado de agentes armados até os dentes, eram de 4 para 5 horas da tarde quando um pelotão de policiais civis e militares comandados por um delegado do DOPS invadiram a cooperativa atirando para todos os lados: era fuzil e metralhadora atirando para o chão e para o teto e gritando: “seus pés-rapados, canalhas, vão morrer todos seus cambadas...”. Gritavam: “Canalhas, morram!” – e atiravam mais. Um sargento muito doido avançou e deu uma coronhada na cabeça do camponês Pedro Greco que se virou e revidou aplicando um golpe de caratê. O policial ainda tentou reagir, mas era tarde demais: o camponês aplicou um segundo golpe de caratê e tomou a arma em uma fração de segundos... O sargento estava morto, o camponês foi preso e junto com ele outros 13 colegas participantes do encontro, enquanto José Honorato, o vereador Nestor Veras e outros escapavam pela porta dos fundos da cooperativa. Umas 20 horas depois, eu e meu sogro, pai de José Honorato, fomos presos. O meu sogro foi liberado e eu fiquei preso por 48 horas. Como eu não tinha participado do encontro também fui liberado.

Após o encontro, José Honorato passou a viver na clandestinidade. A situação piorou ainda mais após uma visita de um grupo de camponeses famintos e desalojados que procuraram José pedindo orientação sobre o que fazer para salvar suas famílias – eles estavam amontoados na beira da estrada que liga Prudente à cidade de Pirapó. Era um grupo de 10 pais que caminharam a pé por mais de 120 Km em busca de uma solução, ou pelo menos uma orientação, para algo que pudessem fazer para salvar as famílias já prestes a morrer de fome e sede... Eram mais de 40 pessoas. José Honorato, após ouvir o relato teria aconselhado a irem até a fazenda mais próxima que pertencia ao Dr. Ramos solicitar algum trabalho e mantimentos (comida) para as mulheres e os filhos não morrerem de fome. Mas resolveram fazer diferente: o grupo foi para a fazenda do Dr. Ramos e levou milho, feijão, óleo, arroz, carne e mandioca – e aí todos puderam dormir uma noite em paz. Tudo aconteceu em uma tarde do mês de setembro de 1952. A polícia foi avisada. No dia seguinte foram presos e, mantidos sobre tortura, confessaram que foram orientados pelo camponês José Honorato Lemos... Com essa informação a polícia dobrou a vigilância numa perseguição implacável em todo o Estado de São Paulo. E assim foi até o desfecho final.

Em 23 de fevereiro de 1953, segundo os Jornais da época (“O Dia”, “Terra Livre” e “Notícias do Hoje” – todos de São Paulo), José se encontrava em Ameliópolis, um pequeno lugarejo nas imediações de Presidente Prudente. Ali fez algumas compras de mantimentos, o bastante para a semana: arroz, feijão, óleo, farinha e algumas coisas mais. Por lá ele demorou um pouco, batendo papo, jogando conversa fora. Nesse momento foi reconhecido por alguém... Percebendo isso tratou de ir embora. Caminhou por uma estrada de terra, carregando os sacos de compra. Parou em um boteco, tomou uma cerveja e continuou andando. Então percebeu que ao longe, bem distante e atrás, vinha um caminhão em disparada. Ele diminuiu a marcha. Quando o caminhão chegou mais perto, José Honorato desconfiou e deixou o leito da estrada, caminhando de vagar, com um chapéu cobrindo os olhos para não ser reconhecido. Percebeu o caminhão parar, ouviu o matracar das armas e em seguida os disparos: eram de 10 a 12 policiais disparando ao mesmo tempo. Ele caiu de frente para o chão. Só teve tempo de dizer: “sou um pai de família...”. Nada mais...

Fuzis e metralhadoras atirando a curta distância, à queima roupa. Os projéteis (balas) varando o corpo por todos os lados, coberto de sangue misturado com terra, farinha e óleo das compras. O corpo foi imediatamente enrolado com sacos de estopas, jogado em cima do caminhão que saiu em alta velocidade – era entre 17 e 18 horas. O corpo ficou escondido em Ameliópolis e enterrado na calada da noite pela polícia – segundo as informações de um jornal da época. Pois alguém observou tudo, deu o alarme e toda a imprensa, todas as rádios de São Paulo anunciaram e condenaram o bárbaro crime cometido pela polícia paulista. Houve protesto por toda a parte. Dias depois eu estava participando de um ato no centro do professorado paulista na Avenida da Liberdade em São Paulo. O presidente do sindicato, o jornalista Freitas Nobre, deu abertura a reunião. O professor universitário, intelectual, João Taibo Cadornega lembrou o nome do camponês assassinado pela polícia do governador Lucas Nogueira Garcez... Houve apartes sobre o assunto: falou a professora Dr. Helena Guimarães, a professora Ofélia Botelho e a professora Elisa Branco – todas da Federação de Mulheres do Estado de São Paulo. Elas condenaram a polícia como autora do bárbaro crime. A professora Elisa disse: “Com certeza houve mãozinha dos grilheiros da região que tem culpa no cartório...”. Alguns advogados, entre eles o Dr. Sandoval Peixoto e o Dr. Rio Branco Paranhos, bem como os Doutores Érico Magalhães de Prudente e Milton Pereira (de Santo Anastácio), todos juntos moveram ações condenando a polícia. Mas foi em vão: a polícia alegou que o camponês morto era um terrorista perigoso, um desqualificado. Com isso a polícia falou mais alto: no começo foi um barulho, mas no final foi um deixa-pra-lá. Ficou por isso mesmo.

Firmino Gomes da Rocha,

seu amigo, cunhado e amigo de todas as horas.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Hospitalidade: prefácio

Tudo começou quando parte da nossa turma ficou sabendo que a equipe do Sempre um Papo (um projeto bastante conhecido em Belo Horizonte, responsável, a muito tempo, por uma parte interessante da agenda cultural da cidade: organizando grandes palestras, lançamentos de livros, etc...) tinha convidado o rabino e escritor Nilton Bonder para lançar e palestrar sobre o seu mais novo livro: “Tirando os sapatos: o caminho de Abraão, um caminho para o outro” (2008). Fomos conferir e, como era de se esperar, ficamos super gratificados com a palestra, que se transformou no assunto predileto da semana. Em especial, nos chamou a atenção as palavras de Nilton Bonder sobre o tema da Hospitalidade. O Pedrão, especialmente gratificado, discorreu sobre a palestra em nosso encontro quinzenal, e sugeriu ao Seo Firmino que escrevesse sobre o assunto. Seo Firmino aceitou o desafio, mas não sem retribuí-lo: “porque, então, todos nós não escrevemos sobre a hospitalidade, e apresentamos os resultados nos próximo encontro de sábado?!” Ora, se o Firminão falou, tá falado! Foram quinze dias preparando, pesquisando – em meio as nossas obrigações diárias – os textos que aqui publicamos. Assim, a quem interessar possa, oferecemos, como todo carinho, os textos a seguir. Boa leitura!

Hospitalidade: uma iniciativa desafiadora?

Por Marcela Rocha de Oliveira Carrilho


É curioso, para não dizer perspicaz, que vocês tenham “inaugurado” o blog Turma do Firmino “hospedando” nele suas impressões sobre a hospitalidade.

Dada a condição que me é outorgada como sócia-fundadora-efetiva-remida do Esporte Clube Firmino (associação com sede em São Paulo – que precede a recém inaugurada Turma do Firmino/BH :-), faço aqui um breve comentário sobre a iniciativa.

Engrosso o coro dos que analisam a hospitalidade pela perspectiva da mutualidade, como resultado dependente da intensão e intensidade do binômio hóspede/hospedeiro. Seja para se “beneficiar como anfitrião”, para estar “aberto e disponível ao outro ou a outra cidade”, ou para “estabelecer uma relação com o outro”: concordo que a hospitalidade, sob esta óptica, pressupõe troca; ação e reação. Me sinto também confortável com o conceito de hospitalidade exprimido no texto daqueles que estabeleceram paralelos entre a “entrega ao outro” ou a “hospedagem do outro nos braços”.

Enfiando minha colher nesse mexido, eu gostaria de propor um desdobramento do tema e convidá-los a refletir sobre razões que, muitas vezes, nos colocam à margem da hospitalidade, ou melhor, que nos fazem ser capazes de pensá-la, mas nem sempre de praticá-la. Assim, de bate-pronto e sem muita elaboração, penso que praticar hospitalidade é demasiadamente desafiador. Exige. Hospedar bem, cordialmente e com alegria, é tentar se destituir da idéia de que outro esteja invadindo, para exergá-lo apenas como um/a querido/a visitante...

Seria a hospitalidade comparável ao desafio de deixar que o outro entre e se repouse largamente em sua poltrona predileta?

De um modo ou de outro, que fique claro aos leitores que a Turma do Firmino é bem hospitaleira, portanto é só chegar...

Hospitalidade: o beneficiário maior é o anfitrião

Por Pedro Pansica


Nenhum viajante pode sobreviver sem a hospitalidade e esta, por sua vez, se faz por um ato de interação. Não é uma ação unilateral, mas sim uma relação de troca. Interagir é abrir mão do comando, do apego, e estar aberto ao próximo.

O anfitrião dispõe seus bens e sua morada, e o visitante dispõe suas novidades e seu entusiasmo, enriquecendo este ato. De modo que a troca vai se realizando em todos os aspectos durante a hospedagem. O ponto que quero destacar é que, nem sempre, mas na maioria das vezes o maior beneficiário acaba sendo o anfitrião, porque o visitante sempre traz algo novo que quebra a nossa rotina e nos faz pensar a respeito.

Para se entender melhor isso, quero citar como exemplo as visitas que recebemos de um grande amigo. Em nossa casa, aos sábados, ele sempre nos revela algo novo, e com entusiasmo vai contando suas histórias interessantes e experiências adquiridas ao longo de sua vida. Sr. Firmino, na mesa jantando e conversando com meus filhos, com minha esposa e comigo, vai nos enriquecendo, provendo gratuitamente toda a família com seus conhecimentos – e, eu, particularmente, vou me enriquecendo e me beneficiando com tudo isso.

Claro que estou fortemente influenciado pelo livro que estou lendo e esta resenha foi ele que me revelou*. Mas não posso negar que de todos os tipos de hospitalidade que existem, das mais rudes até as mais calorosas, tenho que concordar com o autor sobre o fato de que sem hospitalidade não há vida.

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Nota:

* O livro, que recomendo fortemente a todos, intitula-se “Tirando os sapatos: o caminho de Abraão, um caminho para o outro” (2008), de Nilton Bonder.

Hospitalidade: ser ou não ser?

Por Eduardo Rocha Pansica


Vou trabalhar o termo hospitalidade nesse texto com uma relação entre dois ou mais: duas ou mais pessoas, pessoas e cidades e pessoas e idéias. Nesse dois ou mais pode ocorrer uma relação de individualismo e fechamento, ou de disponibilidade e abertura – isso por parte de um ou de todos dentro da relação. A primeira opção está sendo cada vez mais praticada nos lugares onde se encontram as ditas “sociedades mais evoluídas”. Existe nessas sociedades um sentimento forte de consumismo, de auto-valorização, de crescimento por conta própria, de uma ideologia que eleva a graciosa frase de Ariano Suassuna: “Existem dois tipos de pessoas: as que concordam comigo e as equivocadas!”. As pessoas, dessa forma, desenvolvem uma diretriz na vida e a seguem de forma rígida, sem prestar a atenção na hospitalidade oferecida pelo mundo ao seu redor. E o pior, elas desenvolvem um sentimento geral de defesa e intolerância para com o outro “equivocado”, que muitas vezes está apenas tentando praticar a segunda opção: a de abertura e disponibilidade.

Quem nessa chamada “sociedade evoluída” tem tempo para ser aberto e disponível para os outros? Digo aberto como aquela disposição de parar os próprios pensamentos e tentar ser receptivo aos outros. Ser aberto é prestar atenção ao que os outros estão oferecendo, aos costumes apresentados por uma cidade, às possibilidades de um outro caminho, e ao mesmo tempo ficar disponível para retribuir e oferecer tudo aquilo que, de mim, considero interessante. Ser hospitaleiro, enfim, é praticar a “escutatória” do ilustre Rubem Alves e tentar ser o máximo possível altruísta. Seguindo o raciocínio, só se tem a ganhar sendo hospitaleiro. Quando se pára e recepciona o outro, a gente faz uma pausa na nossa vida que, assim, ganha uma revisão (além do que, quando recebemos o outro ganhamos com os presentes oferecidos por ele). Ao pausar, a gente respira e se renova, revendo a vida com outros olhos – olhos já não-viciados. Pausar e praticar a hospitalidade pode ser sempre uma boa saída para quando alguém se encontra estagnado ou super estressado. Nada melhor do que parar, respirar e trocar com as pessoas outras possibilidades de vida.

Hospitalidade: ajudar o próximo


Por Firmino Gomes da Rocha


I

Hospitalidade é um bem maior. Refere-se às pessoas equilibradas e generosas, aquelas que não são egoístas nem individualistas, que acreditam que o sucesso da vida humana está mais para o sucesso coletivo do que para o individual. Refere-se àquelas pessoas que acreditam que a luta entre o capital e o trabalho é mais um desafio e não uma emulação competitiva entre o homem e o capital explorador.

II

O Brasil tem cerca de 200 milhões de pessoas, sendo mais de 50% de pessoas trabalhadoras e de boa índole, isto é, de um nível de hospitalidade admirável. Esse é um sentimento observado tanto nas casas quanto nas ruas; nas igrejas e nas repartições públicas e privadas; no setor de trabalho e de ensino.

Vale a pena observar essa relação entre as famílias, e entre a juventude e as pessoas idosas – é sempre uma lição de vida! Observa-se também nas reuniões, como esta nossa: quando uma pessoa vai falar (não importa se é rica ou pobre; branca, amarela, parda ou negra) é sempre com respeito que se ouve, pois este é o sistema coletivo do pensamento humano em nosso tempo.

O nosso povo é assim. Esteja onde estiver, o brasileiro é reconhecido pelo seu jeito alegre e descontraído, hospitaleiro e de bom humor – e isso é de tirar o chapéu!

III

A hospitalidade tem um forte referencial nas pessoas famosas e mundialmente conhecidas. Entre elas estão a irmã Dulce (Bahia), madre Tereza de Calcutá (Índia), Eva Perón – a deusa da beleza e da bondade na Argentina – e Joana d’Arc, que preferiu a fogueira ardente à traição de seu povo (França)

No Brasil temos Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife; Dom Paulo Evaristo, o cardeal Arns (São Paulo); Frei Leonardo Boff, que foi perseguido pela Igreja e pelo poder militar por ter escrito e divulgado a teoria da libertação. No mundo temos Mahatma Gandhi (Índia), Martin Luther King, líder pacifista (Estados Unidos), e tantos e muitos outros do século XX...

Mas já na Idade Antiga tínhamos Moises e Araão, travando batalhas pela libertação dos escravos e seus trabalhos forçados. O princípio da hospitalidade e espiritualidade do mundo antigo também marcou estórias e lendas que hoje são vistas, com carinho, como didáticas nas civilizações, destacando e marcando caminhos que muita gente vem trilhando através da Bíblia, por milhares de anos. Um caso específico e divulgado foi, sem dúvida, o de José do Egito, filho de Jacob e Raquel, que tiveram mais onze filhos. José era o caçula, mas foi ele que ajudou o povo do Egito a sair da fome: sabendo que o país iria passar fome e doenças, construiu grandes armazéns onde guardou provisões que alimentaram seu povo por 7 anos – período de seca que assolou o continente, principalmente a região de Canaã (sua terra Natal). José foi um homem justo e hospitaleiro: um gênio salvador de um povo.

IV

Hospitaleiro é também um pai que nunca desiste de ajudar e lutar pela felicidade de seu filho, e por ele é capaz de sacrificar a própria vida se assim for preciso. Este é o pai herói. Assim – por que não? – lembremos de Zumbi, o nosso herói lendário, nascido em Alagoas, líder dos escravos em Palmares, morreu lutando contra um exercito de jagunços comandados por Domingo Jorge Velho, um verdadeiro tirano, inimigo número um de todos os negros escravos.

Outro herói de grande envergadura foi Joaquim José da Silva Xavier, conhecido como Tiradentes. Mineiro de Ouro Preto, também foi morto numa luta pela libertação, contra as forças portuguesas – seu corpo foi esquartejado e pendurado no alto dos postes das ruas da cidade. Enfim, muitos foram os homens mortos pelo Brasil a fora. Entre eles lembro de meu cunhado, o líder camponês José Honorato Lemos, um jovem de 32 anos, casado e pai de dois filhos: ele foi covardemente assassinado pela polícia de Presidente Prudente (São Paulo), a mando de um juiz a serviço dos latifundiários locais... Segundo os jornais, o camponês foi morto quando prestava socorro a dezenas de famílias que estavam com os filhos famintos, doentes e semi-nus, acampados na beira das estradas da região que liga a cidade de Presidente Prudente à Ameliópolis.

V

Há também o herói anônimo, desconhecido e meio invisível. Ele prefere o anonimato, mas está em toda parte, sempre na expectativa, ou seja, pronto a praticar o bem. Inesperadamente, não importa onde, ele aparece, sempre na hora exata – em casa ou na rua; na estrada, no mar ou no ar – onde estiver uma pessoa ou um grupo de pessoas em risco de vida, lá estará ele, sempre salvando-as! Usando uma força desconhecida, e tão rápido quanto um raio de luz, ele se joga ao abismo de corpo e alma, mesmo que para isso exponha sua vida ao limite. Vive atento, pois a qualquer momento poderá estar salvando vidas de pessoas das rodas de um carro, de um incêndio, de um afogamento, etc. Quando o inesperado acontece, ele, o herói anônimo, não espera pelo salva-vidas ou pelo bombeiro. Outro dia eu vi na TV que, em um bairro da periferia de BH, um jovem que passeava pelas ruas ouviu uma criança gritando no fundo de um poço. O moço rapidamente arranjou umas cordas e, sozinho, foi descendo até o fundo do poço e salvou a criança! Sem ter tempo de chamar ajuda especializada, esse é o herói anônimo: aquele que salva e não precisa saber a quem.

VI

Por fim, há também o lendário super-herói. O herói que, segundo a lenda, salva o bem contra o mal. Ele é capaz de sair voando pelo espaço ou ir rasgando o centro da terra ou o fundo do mar. Ele pode ainda se tornar invisível, teleguiar o corpo pela mente, a fim de salvar alguém. O super-herói estará sempre atento, em algum lugar do mundo, e pode ser visto quando está a salvar uma pessoa (não importa quem seja), sem visar lucros ou recompensa. É um lendário: não quer e nem aceita que se faça culto a sua personalidade, procurando ser um homem comum. O super-herói é um mito do hospitaleiro.

Hospitalidade: da relação

Por Rafael Rocha Pansica


Este texto*, pequenino, pretende chamar a atenção para um aspecto que, talvez, seja menos percebido quando falamos em hospitalidade. Na maioria das vezes, pensamos a hospitalidade como aquilo que designa a qualidade mais nobre do anfitrião. Assim, o anfitrião, quando é hospitaleiro, é alguém atencioso, cuidadoso, carinhoso com a pessoa que está recebendo em sua casa. A hospitalidade como qualidade de quem sabe receber o outro envolve, necessariamente, a arte de reconhecer outrem. Saber receber o outro em sua casa é saber reconhecê-lo...

Veja, no entanto, que esse outro que nos dedicamos a receber bem não é qualquer pessoa. Esse outro é uma pessoa com quem se quer conviver, com quem se quer manter uma relação de amizade. Pois bem. Este é o ponto que queremos destacar: é-se hospitaleiro para se estabelecer uma relação com outrem. O bacana de ser hospitaleiro está na possibilidade de convivência com o outro, na possibilidade de se relacionar com as pessoas!

Mas se a hospitalidade tem a ver com relação, é preciso notar que ela não tem a ver com qualquer relação. Hospitalidade, como a entendemos, é um tipo específico de relação: uma relação que envolve o reconhecimento mútuo das pessoas envolvidas. Ok, mas o que eu quero dizer com isso? Deixe-me dar um exemplo.

Convidar fulano para vir aqui em casa é um ato que manifesta minha vontade de me relacionar com ele. Quando fulano recebe meu convite, ele sabe disso. O primeiro passo para o estabelecimento da relação foi dado por mim. Para que haja relação, no entanto, é preciso que fulano aceite meu convite... [Note-se, de passagem, que esse primeiro passo – convidar o outro, ser hospitaleiro – exige certa dose de coragem, pois, afinal, o outro pode muito bem decidir não aceitar o meu convite.] Mas vamos supor que fulano aceite meu convite! Ora, isso significa que ele aceitou adentrar na relação de hospitalidade. A partir desse momento me empenho em arrumar a casa, preparar o tira-gosto, o jantar, etc. E, do outro lado, fulano, hospitaleiro, também se empenha em saber aceitar o convite: ele faz questão de comprar o vinho (ou mandar a pamonha na sexta-feira!), de vir com vontade de elogiar a casa, de experimentar e de gostar do tira-gosto... Enfim, vem com vontade de fazer o encontro funcionar.

Em suma: uma relação exige o envolvimento das partes, o empenho mútuo das pessoas. Não só o anfitrião deve ser hospitaleiro, mas o hospede também! É preciso saber falar, mas também saber ouvir: dar margem a um diálogo, não a um discurso de palanque. Se fulano recebe meu convite com indiferença, há o perigo de meu convite parecer bajulação, puxa-saquismo... É hora de repensar o convite! Pois, repito, ambos devem se envolver na relação, o que, nesse caso, implica em saber trocar hospitalidades. A hospitalidade só se dá através dessa troca: eu reconheço o outro, e ele me reconhece.

Por fim, deixe-me dizer uma última coisa: esse reconhecimento de outrem, dado tanto pelo anfitrião quanto pelo hospede, deve ser voluntário, ou seja, verdadeiro. Eis o pulo do gato: não se deve convidar por obrigação; não se deve aceitar o convite por obrigação! (ou pelos menos, essas coisas não devem se encerrar na obrigação...). A troca deve ser voluntária: ou seja, tudo deve ser feito com verdade e alegria...

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Nota:

* Este texto é, do começo ao fim, inspirado no trabalho de Marcel Mauss (1872-1950), eterno mestre, “patrono protetor dos antropólogos”!

Hospitalidade: história de vida

Por Eleuza Maria Rocha e Pansica


Cresci com a hospitalidade. Não sabia... Nunca percebi... É engraçado como convivemos com as coisas e não vemos. Fui cuidada por uma tia desde que nasci, a mãe que conheci. Seu jeito sempre excedeu em carinho e amor. Não só comigo, mas com minha irmã e com todas as crianças da família. Engraçado: ela cuidou e cuida de todas as crianças da família. Quando meu primeiro filho nasceu ela veio cuidar dele... Quando o meu segundo filho nasceu, ela também cuidou... Até hoje ela continua exercendo seus cuidados, com seus bisnetos, sempre transbordando de amor. Esse cuidado é um cuidado diferente: ela sabe a linguagem de um recém-nascido, ela conversa com eles – e eles respondem!, sorrindo, ficando calminhos... É como uma profissão de vida, a profissão da minha querida tia Beiê: só ela sabe o segredo!

Se não bastasse, existe meu pai, o Sr. Firmino, que passou a vida hospedando o mundo a sua volta, acolhendo insaciavelmente a vida!